Nova regulamentação da Lei Anticorrupção
O governo federal acaba de editar um novo decreto regulamentando a Lei nª 12.846, de 2013, conhecida como Lei Anticorrupção.
Trata-se do Decreto 11.129/2022, que revoga o de número 8.420/2015, trazendo algumas alterações importantes, cujo significado e impacto procuramos avaliar nos estreitos limites deste espaço.
De início, chama a atenção a introdução de dois parágrafos no artigo 1º, com regras sobre (extra)territorialidade. O primeiro deles traz para esse artigo, no inciso I, o conteúdo do artigo 28 da lei. O segundo revela, a nosso ver, um elogiável esforço para aprimorar o tratamento dado ao tema pelo parágrafo único do artigo 1º da lei (in fine); pena é que talvez seja insuficiente para sanar a impropriedade — a exigência de “sede, filial ou representação” no território brasileiro para que a pessoa jurídica possa ser submetida a suas normas, o que, atualmente, não se justifica.
No artigo 2º, chama a atenção a colocação do “acordo de leniência” como meio de apuração de responsabilidade (ao lado do PAR), o que é conceitualmente discutível, além de não encontrar respaldo no texto da lei (na mesma linha, aliás, vai o artigo 32 do decreto).
O artigo 3º transfere, da autoridade máxima para o titular da corregedoria de cada entidade, a iniciativa de optar pela abertura de Investigação Preliminar (IP), bem como decidir pela recomendação de instauração de PAR ou pelo arquivamento da matéria, o que, de quebra, também transfere para ele a responsabilidade em caso de omissão.
Nessa investigação, cujo prazo passa a 180 dias (§4º) e que agora dispensará a constituição de comissão (§2º), poderão ser feitas todas as diligências, inclusive suspensão cautelar dos efeitos de atos, compartilhamento de informações bancárias e tributárias, sem que esteja instaurado PAR, vale dizer sem possibilidade de contraditório ou acompanhamento (como ocorre nas IPS, pela IN 8/2020 — CRG) (§3º). Há, nisso, vantagens e desvantagens.
A Seção que trata da instauração e procedimento do PAR incorpora ao Decreto praticamente o que era disciplinado na Instrução Normativa nº 13/2019 da CGU, com pequenas diferenças.
No §2º do artigo 5º, uma curiosidade desperta a atenção: foi retirada, dos atributos da Comissão Processante, a expressão “com independência…“, que é da tradição do processo administrativo, pelo menos desde 1990, como se vê no artigo 150 da Lei 8.112/90.
O artigo 6º, especialmente em seus parágrafos 1º e 2º, traz regras positivas da IN 13/2019, que assim são incorporadas em ato de maior hierarquia: trata-se da exigência de que a indiciação e intimação do acusado contenham todos os elementos indispensáveis à sua defesa, tais como a descrição clara e objetiva do ato lesivo imputado, o apontamento das provas que sustentam o entendimento da Comissão e o enquadramento legal do ato.
Somente destoa do conjunto o §4º, cuja redação é um tanto obscura, permitindo variadas interpretações, além de afastar-se, injustificadamente, do devido processo legal e da orientação do processo judicial, ao não diferenciar o tratamento do acusado conforme tenha ele, ou não, advogado nos autos (artigos 15 e 346 do CPC e artigo 2º da Lei 9.784/99).
Já no artigo 8º, §1º, o decreto incorpora outra regra da mesma IN (artigo 20, §4º), só que desta vez, cerceando a defesa e o contraditório, diferentemente do que dispunha o Decreto 8.420 (artigo 5º, § 2º). O dispositivo inverte a faculdade de optar pela apresentação, ou não, de manifestação defensiva (antes impropriamente denominada “alegações finais”), nessa fase do processo. O que era uma escolha do acusado, sempre que produzidas/juntadas novas provas, tornou-se agora uma faculdade da comissão, o que não se justifica.
As próximas alterações relevantes são encontradas na Seção sobre a Multa (artigos 20 a 27), a começar pelos pesos dos fatores de aumento ou redução e pelo cálculo da vantagem auferida ou pretendida.
Quanto ao cálculo das multas, não houve alteração no valor máximo do somatório dos critérios de majoração. De fato, se considerados os percentuais máximos de cada quesito, a multa total passível de ser aplicada soma 20%, o que está de acordo com o decreto anterior.
O mesmo ocorreu em relação aos critérios que reduzem a multa. Ou seja, o valor máximo, de diminuição, aplicável, permanece em 10%.
Entretanto, apesar da manutenção dos percentuais totais de majoração e redução, as modificações introduzidas nos pesos individuais dos critérios não são neutras e certamente estão a apontar o que, no entender da CGU, após pouco mais de sete anos da vigência do decreto anterior, deva ser ajustado para mais ou para menos.
Nessa linha, por exemplo, na parte dos critérios que aumentam a multa, deu-se ênfase ao “concurso de atos lesivos” que substitui a “continuidade dos atos lesivos”. A alteração é relevante e tendente à aplicação de multas mais altas, seja pela alteração da espécie de concurso, seja pelo elevado peso que lhe foi agora atribuído, de até 4%.
Alterou-se também o percentual pela “tolerância ou ciência do ato lesivo de pessoas do corpo diretivo ou gerencial da pessoa jurídica”, que passa a ser de até 3% (antes era de 1,5% a 2,5%). Ou seja, atribui-se, agora, mais responsabilidade e peso à “conduct at the top”.
Para viabilizar esse aumento e não extrapolar o teto de 20%, foi necessário ajustar o peso da reincidência, diminuindo-o de 5% para 3%.
Entre as causas de majoração da multa, vale registrar, ainda, a questão da existência de contratos mantidos ou pretendidos com a Administração Pública. Apesar de não ter havido aumento do percentual máximo aplicável, a redução dos patamares mínimos das faixas dos valores dos contratos certamente redundará na aplicação de multas mais elevadas.
Digno de aplausos, por outro lado, é o aumento do valor máximo de redução da multa, mediante a comprovação de que a pessoa jurídica possui e aplica um efetivo Programa de Integridade. Embora tímida, a majoração de 4% para 5% incrementa o estímulo para adoção do compliance anticorrupção, contribuindo para a construção de um ambiente empresarial mais ético e concorrencialmente mais justo. Todavia, seria de todo desejável fosse fixado patamar de redução ainda mais elevado nesse quesito.
A fim de viabilizar esse aumento e não modificar o teto de 10% dos critérios redutores revisou-se para baixo em 0,5% o valor máximo de desconto para “a não consumação da infração” e a “comprovação de ressarcimento dos danos resultantes do ato lesivo”.
No artigo 26, que trata da vantagem pretendida ou auferida pela pessoa jurídica com a prática do ato lesivo, as mudanças promovidas, segundo a CGU, visam a dar maior “clareza para o cálculo desse fator”, bem como contemplar as “três possíveis metodologias” passíveis de serem utilizadas, quais sejam: a) pelo valor total da receita auferida em contrato administrativo e seus aditivos; b) pelo valor total de despesas ou custos evitados; ou c) pelo valor do lucro adicional auferido pela pessoa jurídica.
Permanece a proibição de que não podem ser deduzidos do cálculo estimado os gastos incorridos pelas pessoas jurídicas com as vantagens indevidas prometidas ou pagas a agentes públicos ou a terceiros a ele relacionados.
De todo modo, não há dúvida que a melhor explicitação das metodologias traz mais segurança e transparência ao processo.
O capítulo sobre o Acordo de Leniência traz alguns pontos que merecem atenção.
No artigo 35 há novas disposições, formalizando a participação da AGU, em conjunto com a CGU, na negociação e celebração dos acordos de leniência, o que é, sem dúvida, conveniente, uma vez que a Lei 12.846 menciona apenas a competência da CGU, decorrendo a da AGU de outros diplomas legais, como a LC 73/1993. Tratou-se, em verdade, de explicitar, no decreto, aquilo que já se faz na prática, com suporte em atos de menor hierarquia — Portaria Interministerial 2.278/2016 e Portaria Conjunta 04/2019.
O artigo 37 introduz novas exigências para celebração de Acordos, sendo que algumas delas podem gerar questionamento, até por desbordarem do estabelecido na Lei 12.846.
Por exemplo, o requisito de “admissão de sua participação na infração” (previsto no artigo 30, III do Decreto 8.420, em harmonia com o artigo 16, III, da Lei) foi substituído pelo de admitir “sua responsabilidade objetiva quanto aos atos lesivos” (artigo 37, III do novo decreto), o que certamente não é a mesma coisa, carecendo, assim, de claro respaldo legal.
Tampouco encontra suporte na lei a exigência de “reparar integralmente a parte incontroversa do dano” (VI), sobretudo entendida esta como incluindo, além dos valores admitidos pela acusada, também “aqueles decorrentes de decisão definitiva no âmbito do processo administrativo ou judicial” (§2º). É certo que a celebração de acordo de leniência “não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano” (artigo 16, §3º da Lei), mas coisa distinta é colocar-se a reparação como pré-requisito para celebração do acordo, ainda que limitada à “parcela incontroversa”, como vinha-se fazendo na prática e agora se introduz no decreto (artigo 37, IV).
A medida já era objeto de polêmica antes, argumentando seus defensores com o teor do §4º do artigo 16 da lei, que reza dever o acordo “estipular as condições necessárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo”. Por melhores que sejam as intenções dos que a defendem, trata-se de esforço interpretativo estéril. Os “requisitos” para celebração dos acordos estão expressamente listados, em numerus clausus, no §1º desse mesmo artigo 16. Não faz sentido entender que o §4º venha, depois, a acrescentar um novo requisito. Ao contrário, esse parágrafo guarda relação com um dos requisitos do §1º, especificamente o do inciso III, autorizando a inclusão de cláusulas que garantam uma colaboração que seja efetiva e assegurem o resultado útil do processo; mediante, por exemplo, medidas de natureza cautelar (vale dizer, instrumental) para o cumprimento daquele requisito, o que jamais pode ser confundido com o acréscimo de requisitos outros, sem previsão na lei.
O artigo 39 do novo decreto torna obrigatória a celebração do Memorando de Entendimento e diz que sua assinatura interrompe a prescrição e a suspende pelo prazo da negociação, até 360 dias. Aqui, novamente, tem-se inovação jurídica que, conquanto desejável e bem-intencionada — voltada a atender à preocupação com a prescrição resultante de eventual prolongamento das negociações — não pode ser feita via decreto, sob pena de flagrante ilegalidade. Isto porque, nos termos expressos da Lei 12.846, o que interrompe a prescrição é a celebração do acordo (artigo 16, § 9º).
Ainda que assim não fosse e a Lei 12.846 nada dispusesse sobre prescrição no seu art. 16, seria descabido criar causas interruptivas da prescrição por via de decreto.
Na mesma ordem de ideias, outros pontos problemáticos sobre prescrição se sucedem, agora no artigo 49. A uma, porque a interrupção (salvo por ato judicial) só pode ocorrer uma vez, segundo o artigo 202 do Código Civil; e aqui são previstas várias interrupções — no artigo 39, pela assinatura do memorando e no artigo 49, pela celebração do acordo, além daquela prevista no artigo 25, parágrafo único, da lei — pela instauração do processo.
A duas, porque o artigo 49 parece ir além do que prevê a lei, sobre tal interrupção. O §9º do artigo 16 da lei não diz “…que (o prazo) permanecerá suspenso até o cumprimento dos compromissos…”). Esse acréscimo, por via do decreto regulamentador, pode ser objeto de debate à luz do artigo 202 e parágrafo único do Código Civil, da Lei 9.873/99 (Prescrição nos processos administrativos) e do artigo 34 da Lei 13.140/2015 (Lei da Mediação), devendo-se atentar, ainda, para o princípio da especialidade. Essa é discussão que este espaço não comporta, mas já se pode perceber que não será pacífica a aplicação dessa norma.
Em outro giro, merece destaque o artigo 51, que prevê, agora expressamente, o monitoramento do cumprimento do Programa de Integridade, a ser feito pela CGU, direta ou indiretamente.
Nos artigos 52 a 55, a nova regulamentação da LAC traz, em boa hora, uma série de regras, inexistentes no decreto anterior, a respeito dos efeitos resultantes do cumprimento do acordo, bem assim de seu eventual descumprimento e rescisão, de forma mais completa que na Portaria Conjunta CGU/AGU, de 2019.
Os arts. 56 e 57 tratam do Programa de Integridade — com algumas alterações interessantes e oportunas em relação aos atuais artigos 41 e 42 do Decreto 8.420/2015, destacando-se as disposições relativas à adequada destinação de recursos ao programa, pela alta direção, gestão de riscos, ações de comunicação (ao lado do treinamento), diligências quando da contratação de pessoas politicamente expostas e supervisão dos patrocínios, dentre outras.
Por fim, cabe destacar, nas Disposições Finais, o artigo 68, que visa estimular ações de articulação e coordenação entre o MJ, a AGU e a CGU, no enfrentamento da corrupção e delitos conexos, o que é sempre muito bem-vindo e necessário.
https://www.conjur.com.br/2022-ago-10/hage-navarro-regulamentacao-lei-anticorrupcao