A controvérsia em torno do inciso V do artigo 5º da Lei Anticorrupção

Tem sido frequente, nos últimos tempos, seja no curso de processos — judiciais ou administrativos — seja em seminários ou artigos publicados, o debate em torno de qual a melhor interpretação a ser dada ao inciso V do artigo 5º da Lei 12.846/2013, a Lei Anticorrupção.

O foco do debate consiste em saber se a conduta tipificada como ilícita no mencionado inciso abarca toda e qualquer dificuldade oposta a qualquer atividade de investigação/fiscalização de órgãos/entidades/agentes públicos, em qualquer área de atuação do estado, ou se, para que incida esse dispositivo da Lei Anticorrupção, tal investigação/fiscalização há de referir-se à corrupção.

A correta interpretação desse dispositivo legal — como, de resto, a de qualquer outro — há de conjugar elementos sistemáticos, semânticos, finalísticos, e históricos ou genéticos.

O entendimento aqui sustentado é o de que somente podem subsumir-se nesse dispositivo condutas que visem a dificultar ou obstruir a fiscalização ou investigação de atos relacionados à corrupção. (E também, como é óbvio, a fiscalização/investigação de quaisquer outros atos se a conduta obstrutiva/dificultadora envolver, ela própria, o oferecimento de vantagem indevida ao agente fiscalizador. Mas, neste caso, o enquadramento dar-se-á diretamente no inciso I do mesmo artigo).

Isso, aliás, se aplica não apenas ao Inciso V, mas também aos Incisos II e III do mesmo artigo, de modo que, na realidade, o artigo 5º contempla duas espécies de normas: normas de aplicação autônoma e normas de aplicação dependente de sua combinação com outra norma.

Pertencem à primeira espécie as normas contidas nos incisos I (corrupção ativa/suborno) e IV (fraude em licitação e assemelhadas).

Pertencem, por outro lado, ao segundo grupo aquelas expressas nos incisos II, III e V.

Note-se que a norma do Inciso II, inclusive, é expressa ao mencionar, explicitamente, o complemento “… a prática dos atos lesivos previstos nesta lei”.

Já no caso dos incisos III e V isso está claramente implícito, tratando-se apenas daquela opção redacional, comum na elaboração das leis, por meio da qual se evita, por economia ou elegância, a repetição da mesma literalidade posta em itens semelhantes em uma enumeração. Nesses incisos, portanto, como nos demais, somente podem ser subsumidas condutas que tenham algo a ver com corrupção. Afinal, estamos tratando da Lei Anticorrupção, e não de uma Lei Geral contra Ilicitudes.

Assim, no inciso III, a “utilização de interposta pessoa … para ocultar …os reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados”, só pode ser enquadrada na Lei Anticorrupção se essa “utilização” se der para dissimular a autoria ou a prática de atos de corrupção, tais como aqueles definidos nos incisos I ou IV.  Jamais, por exemplo, para punir o uso de interposta pessoa para dissimular, por exemplo, o interesse em embaraçar a fiscalização ambiental. A menos, é claro, que, para tanto, o autor do ilícito corrompa (suborne) um agente público. Mas, nessa hipótese, o enquadramento já se daria no próprio inciso I.

No Inciso V, de igual modo, a obstrução a uma fiscalização/investigação somente é subsumível a essa lei caso se cuide de fiscalização ou investigação de atos, condutas ou suspeitas de corrupção, tais como aquelas previstas nos já mencionados incisos I e IV. De outra sorte, caso se entendesse o inciso V como aplicável a qualquer atividade fiscalizatória ou investigativa, chegar-se-ia ao despropósito de qualificar como ato de corrupção aquele de alguém que procurasse encobrir a placa do veículo de uma empresa, para furtar-se à fiscalização do trânsito. Ou a do contador que deixasse de apresentar um documento à fiscalização tributária. Ou qualquer embaraço oposto por uma empresa à fiscalização das regras trabalhistas, e assim por diante.

A toda evidência não pode ser essa a melhor interpretação desse dispositivo legal, além de todas as razões acima exposta, também porque não se devem admitir interpretações que conduzam ao absurdo.

Das razões aqui expostas, aliás, não destoam doutrinadores que já se debruçaram sobre o tema, tais como Márcio de Aguiar Ribeiro (Responsabilidade Administrativa de Pessoas Jurídicas à luz da Lei Anticorrupção), José Anacleto Abduch Santos, Mateus Bertoncini e Ubirajara Custódio Filho (Comentários à Lei 12.846/2013 – Lei Anticorrupção), e Fabricio Motta, em obra coordenada pela professora Maria Sylvia Di Pietro e Thiago Marrara (Lei Anticorrupção Comentada).

Tal interpretação é a única que se ajusta, também, aos termos da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, em cujo artigo 25, encontra-se a previsão de que  “cada estado Parte adotará as medidas legislativas … necessárias para qualificar como delito, quando cometido intencionalmente:

a) o uso da força física, ameaças ou intimidação, ou a promessa, o oferecimento ou a concessão de um benefício indevido para induzir uma pessoa a prestar falso testemunho … em processos relacionados com a prática dos delitos qualificados de acordo com esta Convenção;
(…)”

Na mesma senda, o próprio relator do Projeto de Lei 6826/2010, na Câmara, registrou em seu voto:

“No artigo 6º (atual art. 5º) reorganizamos os incisos (…)
Eliminamos, ainda, no art. 6º (atual 5º) , o inciso XI do projeto original, por tratar de matéria que não se enquadra nos objetivos do projeto de lei, posto que visa punir empresas por sonegação fiscal, e não pela prática de atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira caracterizada por corrupção, ou mais especificamente suborno.”

Nada poderia ser mais claro para demonstrar, ainda uma vez, de modo inequívoco, o sentido da norma contida no Inciso V do artigo 5º da Lei Anticorrupção.

Isso não obstante, outros ângulos de interpretação devem ser trazidos à baila. Dentre eles, os elementos finalístico, sistemático e histórico.

Assim, é indispensável indagar qual, afinal, o alcance objetivo dessa lei e qual o seu campo de abrangência, gestada que foi no âmbito do Poder Executivo no ano de 2010, em face da cobrança da OCDE para que o país cumprisse com o compromisso assumido ao assinar a Convenção contra o Suborno Transnacional.

A resposta a essa questão envolve a identificação do bem jurídico pela lei, de onde se pode, então, com segurança, chegar à correta interpretação do artigo 5º e seus incisos. Essa tarefa, por sua vez, exige a análise do contexto que cercou a elaboração e aprovação desse diploma legislativo.

Como é cediço, a corrupção no Brasil sempre foi considerada um grave problema sistêmico e, para combatê-la, diversas leis voltadas à prevenção e persecução de ilícitos, à promoção da ética e da transparência, foram incorporadas ao ordenamento nas últimas décadas, constituindo o que hoje é denominado de “sistema brasileiro anticorrupção”, que inclui, desde capítulos do Código Penal até leis como as de Improbidade, da Ficha Limpa e várias outras.

Ocorre que, não obstante essa variedade de normas voltadas direta ou indiretamente ao enfrentamento da corrupção (lato sensu), o Brasil não dispunha, até 2013, de lei que tornasse possível a responsabilização objetiva, da pessoa jurídica, por ato de corrupção propriamente dita, aí incluído o suborno transnacional.

Essa relevante lacuna não passou desapercebida dos organismos responsáveis pelo monitoramento das Convenções contra a Corrupção, os quais passaram a “cobrar” a adoção de lei sobre a matéria.

Foi nesse contexto histórico, a exigir medidas hábeis de combate à corrupção ativa empresarial (suborno), que o Projeto de Lei 6.826 foi proposto pela Controladoria-Geral da União (CGU), juntamente com outros órgãos, em 18 de fevereiro de 2010. Na exposição de motivos da proposta, lê-se o seguinte:

“O anteprojeto tem por objetivo suprir uma lacuna existente no sistema jurídico pátrio no que tange à responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a Administração Pública, em especial, por atos de corrupção e fraude em licitações e contratos administrativos.
[…]

Uma vez encaminhado ao Congresso, o projeto foi relatado pelo Deputado Carlos Zarattini, que em seu voto também deixou claro o objetivo da proposta:

“O controle da corrupção passou a ter, portanto, fundamental importância no fortalecimento das instituições democráticas (…), motivo pelo qual foram elaboradas as convenções (…) das quais o Brasil é signatário.
Com isso, nosso país obrigou-se a punir as pessoas jurídicas que cometem atos de corrupção, (…), em especial, aqueles denominados de suborno transnacional (…)
Surgiu daí, portanto, a necessidade de elaboração de legislação específica que alcançasse, por meio da responsabilização administrativa e civil, as pessoas jurídicas responsáveis pelos atos de corrupção descritos nos acordos internacionais, posto que os atos de corrupção ativa e passiva estabelecidos como crime em nosso direito penal têm o poder de atingir apenas as pessoas naturais.
 (Grifou-se)

Tornando-se logo conhecida como Lei Anticorrupção, a Lei 12.846, de 2013, veio, assim, consolidar e coroar um longo e exitoso processo de fortalecimento do marco normativo brasileiro de combate à corrupção.

Nosso país, finalmente, se ombreava a outras nações signatárias da Convenção Antissuborno (da OCDE), que já possuíam legislação específica nesse sentido, como é o caso dos Estados Unidos, com o FCPA, e do Reino Unido, com seu UK Bribery Act, cujos nomes já deixam claro seu objeto.

Ora, se a Lei 12.846, de 2013, veio para preencher essa lacuna (relativa à prática de corrupção por pessoas jurídicas), não há razão ou fundamento jurídico para utilizá-la, como pretendem alguns, como instrumento de repressão geral de condutas ilícitas outras, as quais, conquanto condenáveis, não estão abarcadas em seu escopo, uma vez que não têm como alvo o bem jurídico tutelado por essa lei. E, em matéria de Direito Sancionador, como se sabe, não há lugar para interpretações frouxas, flexíveis ou analógicas, quando se trata de tipos legais de ilícitos. Por isso mesmo, não se podem admitir soluções “intermediárias” para a questão aqui posta, de sorte a entender-se que no inciso V coubessem — independente de envolverem corrupção — os casos “mais graves” de obstrução da fiscalização; não cabendo ali, porém, os casos “leves” ou “pontuais”. Como se faz evidente, tal grau de subjetivismo é incompatível com o Direito Sancionador.

Por todas estas razões, o objeto da Lei Anticorrupção — combate à corrupção, defesa do erário — não se pode confundir com o de qualquer outra norma que verse sobre outras espécies de ilícito ou de ilegalidade. Conforme já repetidamente assentado pelo STJ com referência à caracterização da “improbidade” — e, por igualdade de razões, aplicável à “corrupção” — não se pode confundir seu conceito com os de “ilegalidade” ou “ilicitude”, estes últimos conceitos muito mais amplos. Nas palavras da Corte Superior, a improbidade é uma ilegalidade qualificada, como se colhe em julgados como o AgInt no REsp 1.323.239/AM, 2ª Turma, Rel. Min. Og Fernandes, j. 29.04.2020.

Isto posto, é de perceber-se que, ao analisar o artigo 5º da Lei Anticorrupção, tem-se como primeira constatação que a enumeração dos incisos ali é exaustiva (numerus clausus), o que resulta claro da expressão final do enunciado “assim definidos”.

Em segundo lugar, cabe lembrar — embora de geral sabença — que os incisos (ou parágrafos) de qualquer artigo de lei devem ser interpretados como partes integrantes do todo — além de, evidentemente, serem contextualizados no próprio ordenamento como um todo.

Desse modo, tem-se, na relação de figuras típicas definidas nos incisos I a V, condutas específicas que haverão de estar referidas, sempre, à corrupção e, além disso, devem tais condutas estar relacionadas à matéria descrita no enunciado principal do caput, o que equivale a dizer, à lesão ao patrimônio público nacional ou estrangeiro, provocado por ato de uma pessoa jurídica, ou aos princípios da administração pública a isso pertinentes, bem assim aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil nessa mesma seara — do combate à corrupção.

Desnecessário dizer que a menção aos compromissos internacionais e aos princípios da administração, não tem o alcance genérico que alguns possam pretender, sob pena de descaracterizar-se o próprio objeto da Lei. Mesmo porque não se haveria de imaginar que a norma se referisse a todos ou quaisquer “compromissos internacionais do Brasil”, inclusive àqueles que nada têm a ver com corrupção, a exemplo das convenções sobre o clima, ou sobre o trabalho infantil! Ou a quaisquer “princípios da administração”, ainda que desvinculados do objeto da lei, como o princípio da eficiência.

Assim, é de concluir-se que as hipóteses típicas de ilícitos puníveis com base nesta lei são: a) pelos tipos autônomos, aquelas constantes no Inciso I (o oferecimento de vantagem indevida a agente público) e no Inciso IV (fraude em licitação); ou b) pelos tipos compostos ou combinados, as previstas nos Incisos II (custeio da prática de atos de corrupção previstos nesta lei), III (dissimulação da autoria de tais atos, valendo-se de interposta pessoa) ou V (obstrução da fiscalização ou investigação dessa mesma espécie de ato).

 

https://www.conjur.com.br/2022-out-09/hage-navarro-controversia-torno-inciso-art-lac

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