O Supremo Tribunal Federal e a decisão cautelar sobre os cursos de medicina

Em bem fundamentada decisão cautelar, o Supremo Tribunal Federal sobrestou parte dos processos administrativos relativos à autorização de cursos de medicina em trâmite com base em decisões judiciais.

 

 

A indecisão governamental e a falta de políticas claras fomentaram a insegurança jurídica e obrigaram diversos jovens brasileiros a estudar em países vizinhos, a par da exponencial judicialização do problema. Uma questão tormentosa, cujo ponto central é o direito à saúde, negado peremptoriamente pelo órgão de regulação, à míngua de número suficiente de médicos. Interessados na manutenção de um modelo restritivo construíram narrativa desprovida de fundamentos fáticos, enviesada, aliciante para quem não se interessa efetivamente em resolver o problema.

A decisão foi proferida na ADC 81 e ADI 7.187, com relatoria do ministro Gilmar Mendes. Depende de ratificação do Plenário, nos termos do artigo 21, V, do Regimento da Corte. A decisão é um divisor de águas e o assunto deve doravante ser tratado em seus termos e limites. O decano da corte colocou a discussão em um patamar mais elevado.

Toda controvérsia gira em torno da constitucionalidade e da correta interpretação do artigo 3º da Lei 12.871/2013, que criou o Programa Mais Médicos e que impôs uma licitação (chamamento público) para a abertura de novos cursos de medicina. Deve-se também atentar para a livre iniciativa, valor constitucional de muito prestígio na ordem econômica, e que estimula a discussão em um prisma menos ingênuo.

 

 

A cautelar inovou na abordagem, tratando a questão não apenas como uma discussão sobre a atividade de ensino. Pensou-se o problema sob o prisma da discussão relativa à distribuição de recursos humanos na área de saúde. Foi além do debate. Colocou-se no centro julgamento o tema da política pública de distribuição de médicos no país. Não se trata de abrir (ou não) novos cursos. Trata-se também da distribuição racional de recursos humanos na área de saúde. Essa é a base da decisão. É seu fundamento. É o que lhe substancializa.

A técnica usada para fundamentar a cautelar — ou o tema principal, na verdade — foi a da ponderação para apurar a razoabilidade e a proporcionalidade da norma questionada. Essa técnica demanda a verificação da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito da regra discutida. O ministro relator conhece profundamente essa metodologia e a decisão aqui comentada é uma aula que demonstra essa superlativa proficiência.

Quanto à adequação, fixou que: “A política estatal indutora [vincula] a atuação econômica dos agentes privados à finalidade pública de melhoria dos equipamentos públicos do Sistema Único de Saúde”. Já a respeito da necessidade, mencionou que: “O debate, embora rico e plural, não se revelou propositivo no tocante a alternativas regulatórias especificamente voltadas à solução da desigualdade na oferta de serviços médicos à população”. Por fim, quanto a proporcionalidade em sentido estrito, explicou que: “É natural que […] o legislador ordinário construa políticas públicas indutoras e restritivas, voltadas justamente a ordenar e integrar a formação dos recursos humanos ao Sistema Único de Saúde”. Dessa forma, deveria ser considerada razoável e proporcional a norma analisada.

A análise (em forma de decisão) é, densa, firme, como esperado. Alguns temas talvez suscitem ajustes pontuais. Por exemplo, e construtivamente, lembre-se que o “chamamento” esteve suspenso por cinco anos (fato que mereceu inclusive uma menção na cautelar em outro ponto, quando foi mencionado que além do aumento de vagas, “…a moratória estendida por anos sem a correspondente reestruturação do sistema, engendra distorções e dá azo a especulações sobre a formação de reserva de mercado e criação discricionária de barreiras à entrada”).

O ministro Gilmar, profundo conhecedor dos impactos práticos das decisões do tribunal lembrou que: “O que não pode perdurar é sistema que garroteie a porta de entrada no mercado, mas viabilize que as empresas que nele atuam aumentem progressivamente as vagas de seus cursos”. Essa crítica é importante porque, no caso dos editais do Mais Médicos isso de fato ocorreu e continuará acontecendo se não tivermos uma contenção.

Alguns tópicos serão certamente explorados em embargos e nos debates que ainda ocorrerão em Plenário. Nesse sentido, a Procuradoria Geral da República sustentou em denso parecer que a maioria das ações relativas a esse assunto foi proposta enquanto vigorava a suspensão do Mais Médicos. Além disso, deve-se enfatizar a fala do representante do Cade em audiência pública, transcrita na cautelar, que expôs que o órgão vê com ressalvas: “….o fechamento absoluto de abertura de novos cursos, porque esse fechamento absoluto pode impedir que novos agentes disruptivos, que sejam qualificados e tenham tecnologias de ensino igualmente eficientes ou mais eficientes do que as outras existentes, entrem no mercado”, que, acrescentamos, ocorreu entre 2018 e 2023.

Por fim, cabe descrever o que foi decidido: a principal determinação foi o sobrestamento, ou a suspensão, dos processos administrativos de curso que ainda não tiveram uma análise documental. Em paralelo, os processos administrativos de cursos que passaram dessa fase seguem normalmente, pois: “…a segurança jurídica deve ser prestigiada, de modo a permitir que os processos administrativos que ultrapassaram a fase inicial de análise documental a que se refere o art. 19, § 1º do Decreto 9.235/2017 tenham regular seguimento”.

Nesse contexto, foram valorizados, ainda, investimentos, impactos e expectativas criadas nas comunidades que abrigam os cursos. Os processos que seguem tramitando, enfim, deverão considerar as regras do programa Mais Médicos, em especial a existência de equipamentos, convênios e contrapartidas para os municípios.

Outra decisão foi a manutenção dos cursos já aprovados, afinal: “…ainda que não seja o trâmite da política pública considerada constitucional nestes autos, é inegável que esses cursos cumpriram os requisitos mínimos para funcionamento regular, não oferecendo riscos à população e ao seu mercado consumidor. Pelo contrário, é do interesse da sociedade que esse longo processo de instalação das faculdades, com admissão de alunos e corpo docente, não seja revertido”.

Nessa ponderada decisão talvez seriam oportunos dois esclarecimentos, que poderiam ser provocados por meio de embargos. O dispositivo normativo mencionado para modular a decisão (artigo 19, do Decreto 9.235/2017) parece se referir a credenciamento institucional e não a autorização de cursos. Acreditamos que o tema também é tratado na Portaria Normativa 23/2007. Pergunta-se também como ficariam os processos judiciais durante a vigência da cautelar do STF. A lógica aponta para não serem indeferidos os pedidos dos processos judiciais alcançados pela liminar e para que os demais sejam suspensos, sem decisão contrária ou favorável.

Nessa mesma zona cinzenta encontram-se dezenas de processos administrativos que não chegaram a ter os documentos analisados por exclusiva responsabilidade do MEC, que atrasou em alguns casos e até mesmo descumpriu decisões judiciais. Nessas situações não parece justa a suspensão do processo em virtude da fase que se encontra e há precedentes, do próprio STF, sobre a impossibilidade do particular ser prejudicado pela morosidade da administração pública. Há uma mora do MEC, que não pode prejudicar ainda mais quem confiou em norma jurídica que permitia investimentos e expectativas.

A validação de todas as ações propostas, dado os cinco anos de moratória, poderia ser uma providência à espera de deferimento jurisprudencial, como pá de cal nesse tormentoso assunto, até mesmo em virtude da imprecisão da legislação, da insegurança jurídica que disso resulta e do desvirtuamento de um programa governamental originariamente criado com a melhor das intenções. Tem-se, inclusive, uma questão gramatical. Os “mais” médicos não poderia resultar, em qualquer hipótese, em um “menos” médicos. Esse registro linguístico não é vago, e nem ambíguo.

Juridicamente, discutimos, no limite, a defesa da Constituição. O prolator da decisão afirmou em obra fundamental de doutrina que “o reconhecimento da supremacia da Constituição e de sua força vinculante em relação aos poderes públicos torna inevitável a discussão sobre as formas e modos de defesa da Constituição e sobre a necessidade de controle de constitucionalidade dos atos do Poder Público”. É o que se espera do STF, na continuidade de análise de decisão corajosa e oportuna.

Fonte:https://www.conjur.com.br/2023-ago-09/opiniao-stf-decisao-cautelar-cursos-medicina

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