Os dez anos da Lei Anticorrupção

Sucedem-se, nestes dias, as comemorações pela passagem dos dez anos da Lei 12.846, de 1º de agosto de 2013. Nada mais natural, à vista da importância de um diploma legal que veio preencher inaceitável lacuna em nosso ordenamento, onde faltava um instrumento adequado para a responsabilização de pessoas jurídicas por atos de corrupção — tanto no âmbito interno quanto no plano transnacional.

 

 

Referida omissão normativa era também motivo de constrangimento nos foros internacionais em que se discutiam e acordavam medidas para enfrentamento da corrupção em escala global.

Aprovado, afinal, em 2013, o Projeto de Lei nº 6826, apresentado pelo Poder Executivo em 2010, permitiu ao Brasil ombrear-se aos países mais avançados do mundo, possuidores de regras legais semelhantes.

Justas, assim, sem dúvida, as celebrações.

 

 

Mais importante é, todavia, aproveitar a data para — tal como fez a CGU, com grande sucesso, no dia 1º de agosto — promover uma reflexão ampla, em torno do que a experiência desses dez anos foi capaz de nos revelar e, assim se espera, nos ensinar. O que funcionou ou deixou de funcionar, na prática. O que ficou abaixo das expectativas e o que as excedeu. Estas e outras semelhantes são as questões que devemos colocar e tentar responder, para, a partir daí, avaliarmos quais as ações ou medidas mais aconselháveis, em cada caso.

Um dos pontos em que a lei poderia ter sido mais ousada, a meu ver, foi no estímulo à adoção de medidas de integridade. Estas, ao invés de constituírem-se apenas em um dos fatores de atenuação na aplicação da multa (artigo 7º), deveriam ser causa autônoma de redução bem mais significativa, prevista na lei e aplicável às demais sanções, inclusive na via judicial. A propósito, convém sempre lembrar que a Lei Anticorrupção (LAC) tem caráter nacional e regula não somente o processo administrativo, mas também o judicial.

De outro lado, bem poderia o programa de integridade ter previsão clara, na lei, como condição para celebração dos acordos de leniência.

Tais acordos, por sua vez, necessitam, há muito tempo, de melhor normatização, especialmente no que se refere à multiplicidade de órgãos que neles demandam participação, de modo a bem equacionar-se a questão da denominada independência das instâncias sancionadoras, de um lado, e dos “distintos guichés de negociação”, de outro. Nesse particular, se é verdade que CGU e AGU já chegaram a excelente nível de articulação, TCU e Ministério Público ainda precisam avançar.

Ainda no campo das soluções consensuais de conflitos, o mais recente instrumento adotado pela CGU, denominado “Julgamento Antecipado do Mérito” do PAR, com resultados, aliás, muito positivos, foi criado por Portaria. Talvez se devesse elevar o nível dessa norma, para permitir-lhe utilização mais ampla e segura, além de alguns ajustes, incluindo denominação mais adequada.

Outro ponto que tem suscitado discussões acaloradas é o referente ao cálculo da multa e à base desse cálculo — o faturamento bruto. Admitindo ser esse um problema real, sobretudo para setores empresariais com alto faturamento e baixa margem de lucro, a grande dificuldade consiste na busca de um referencial substitutivo que reúna razoável consenso.

Por importantes que sejam as questões até aqui apontadas, entretanto, a mim me parece que uma constatação ainda mais relevante deve ser considerada, e com certa urgência. Trata-se de algo que salta aos olhos de quem observe, com atenção, a aplicação prática da Lei Anticorrupção, como vem sendo feita nos últimos anos: a interpretação ampliativa do objeto da Lei 12.846/2013, que, embora se acredite bem intencionada, desborda dos seus legítimos contornos, nublando e desviando seu foco, e, assim, confundindo e obscurecendo os limites do bem jurídico tutelado.

As leis não nascem ao acaso, nem, por geração espontânea. Essa lei resultou, como todos sabemos, de determinadas circunstâncias e pressões, sociais e institucionais — nos planos nacional e internacional — que nos cobravam uma legislação anticorrupção, voltada à responsabilização da pessoa jurídica corruptora, justamente porque o nosso país ainda não possuía tal regramento específico.

No plano internacional, vinha da OCDE a principal cobrança, vez que, em sua Convenção Antissuborno, havia cláusula prevendo expressamente essa obrigação.

Foi, então, apresentado pelo Poder Executivo, em 2010, o PL 6.826 que, aprovado pela Câmara, permaneceu pendente no Senado até o ano de 2013 quando, sob pressão dos movimentos populares, foi, afinal, aprovado e sancionado.

A Exposição de Motivos do anteprojeto, por sua vez, tampouco deixava qualquer dúvida ao enfatizar que o objetivo era suprir uma lacuna do sistema jurídico brasileiro quanto à responsabilização por atos de corrupção. E não é por acaso que, em duas páginas, a palavra “corrupção” é nele citada 14 vezes.

Diante disso, não parece razoável dispersar o foco e esmaecer os contornos desse diploma legal, nivelando a ênfase que se pretendeu posta no combate à corrupção, para distribui-la igualmente entre quaisquer espécies de atos ilícitos ou lesivos.

Pois é isso o que vem sendo feito por alguns aplicadores da Lei Anticorrupção nos últimos anos.

Se ocorrem ilícitos da Lei Rouanet, aplica-se a LAC; se há ilícitos contra a fiscalização fitossanitária do Mapa, aplica-se a LAC; se os ilícitos ofendem a legislação ambiental, aplica-se a LAC; se, de igual modo, atentam contra normas minerárias, aplica-se a LAC; e se há ofensas à legislação tributária, aplica-se também a LAC; e assim por diante, sem limites identificáveis.

Um dos argumentos utilizados para essa deformação do foco e do objeto legal é o de que há diferentes conceitos de “corrupção”: lato sensu e stricto sensu — o que, no plano doutrinário, é verdadeiro. Ocorre, porém, que isso não resolve a questão, pois a LAC está sendo usada em casos que não são definíveis como corrupção nem no mais “lato” dos sentidos. São ilícitos previstos em outras leis, que tutelam outros bens jurídicos, como se viu nos exemplos citados.

Daí passou-se a veicular outra justificativa para isso, anunciando-se, agora, que “a LAC não é lei exclusivamente de combate a atos de corrupção”. E que, “apesar de seu título, ela abrange não somente atos nomeadamente corruptos, mas também lesivos à Administração Pública”, em geral.

Independentemente das boas intenções — sobre as quais não cabe dúvida — ambos os argumentos me parecem inaceitáveis. Eles podem, inclusive, conduzir a LAC a desfecho semelhante ao da primeira Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) — praticamente reescrita, tão radical foi a alteração legislativa promovida pela Lei 14.230/2021, surgida como reação a seus excessos: ali, como aqui, pretendeu-se alcançar tudo — qualquer espécie de ilícito administrativo — como “improbidade”.

Neste ponto, parece prudente lembrar a advertência do mestre e ministro Teori Zavaski, no sentido de que não se pode confundir “improbidade” com qualquer “ilegalidade”. Porque improbidade é uma ilegalidade qualificada.

E o mesmo pode ser dito sobre a “corrupção”.

Pois é por meio dessa extensiva interpretação do alcance da Lei Anticorrupção que algumas autoridades do Executivo — o Judiciário ainda não se pronunciou — vêm dando aos incisos do artigo 5º da LAC uma abertura ilimitada. Pretendem enquadrar, por exemplo, no inciso V, qualquer ato de obstrução ou impedimento de qualquer espécie de fiscalização ou investigação, ainda que nada tenha ela a ver com corrupção nem envolva sequer alguma relação com um agente público. Pode tratar-se, p. ex, da fiscalização de trabalho infantil, de desmatamento ilegal, de poluição hídrica, ou, quem sabe, de fiscalização de trânsito.

A utilização de interposta pessoa para ocultar o real beneficiário de um ato qualquer, de qualquer natureza, também seria enquadrada no inciso III do mesmo artigo da Lei Anticorrupção, independentemente de ter qualquer relação com corrupção.

Pois bem. Se essa for a interpretação a ser dada aos incisos III e V do artigo 5º, seria interessante indagar de seus defensores qual a leitura que deve ser feita do inciso II do mesmo artigo 5º, que tipifica o ilícito de financiar ou subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta lei.

Isto porque, se a obstrução de fiscalização (Inciso V) ou a utilização de interposta pessoa (inciso III) caracterizam “corrupção” qualquer que seja a atividade pública prejudicada pela ação, como justificar que não se dê o mesmo com o financiamento ou subvenção (inciso I) ? Por qual razão lógica ou jurídica esta última espécie de ato (financiamento ou subvenção) somente constitui “corrupção” se o ato financiado for um ato de corrupção, tipificado em algum outro dispositivo desta lei? Como se explica isso?

Evidentemente não se explica. A menos que se interprete, corretamente a meu ver, que, em qualquer dos três casos (incisos II, III e V), a incidência da norma depende de sua combinação com outra, conforme se acha expresso no caso do inciso II (“… dos ilícitos previstos nesta lei”) e subentendido nos demais. Isso, aliás, não é raro em textos legais, seja por economia de linguagem, seja por elegância de estilo, de modo a evitar a repetição, muito próxima, das mesmas palavras.

O fato é que essa aplicação desfocada e vulgarizante da Lei Anticorrupção vem conduzindo ao desprezo, também, de outros princípios fundamentais de interpretação, como os da Especialidade e do Non bis in idem, cujas implicações, todavia, o espaço aqui não comporta desdobrar.

O mesmo deve ser dito sobre um outro ângulo de análise que se impõe ter em mente e levar em conta, embora sem aprofundá-lo neste ensejo: o fato de termos hoje, no Brasil, um Subsistema (ou Microssistema) Brasileiro Anticorrupção, composto por diversos diplomas legais, cada qual com seu campo de incidência e seu objeto bem delimitado — e a LAC é um deles. E, ainda, fora desse subsistema, toda uma legislação no campo do Direito Administrativo Sancionador, que em nada envolve o combate à corrupção.

Fonte:https://www.conjur.com.br/2023-ago-10/jorge-hage-dez-anos-lei-anticorrupcao

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